Saturday 23 March 2019

As pessoas tem medo de arte?








As pessoas tem medo de arte?


De um modo geral, as pessoas não acreditam em si mesmas quando o assunto é arte. Quero dizer, elas não confiam em suas próprias opiniões e pensamentos quando estão em frente a algum tipo de arte, apreciando a arte.
Diante de pinturas, desenhos, objetos ou instalações, elas se sentem desconfortáveis ​​em arriscar opiniões porque não têm certeza sobre seu entendimento sobre arte.
Na verdade, isso não acontece por acaso. Nosso obsoleto sistema educacional não nos prepara para interagir com a arte. Nem nossa família, amigos ou ambiente social. Não é ensinado nas escolas o vocabulário da arte, sua linguagem própria e peculiar. Até mesmo em países onde a arte faz parte da rotina escolar e as crianças estão acostumadas a visitar museus, isso não acontece.
Assim como o vocabulário linguístico - o alfabeto - a arte tem seu próprio vocabulário. Que decodifica as mensagens inscritas no objeto de arte e com o qual temos acesso ao universo da arte.

Mas nem tudo está perdido ...

Acredito que, em geral, podemos usar o que já temos para entendê-la . Nossos próprios recursos internos inatos. Pelo menos na arte moderna. Recursos como intuição, sentimentos, emoções. Elementos básicos que fazem parte do nosso processo de aprendizagem desde a infância. Aquisições que fazemos na vida prática. Experiências espaciais como caminhar, correr, se movimentar, dançar, etc. Estar no mundo e ter consciência do próprio corpo. Cinestesia. Noções espaciais de alto/baixo, largo/estreito, distante/próximo, vertical/horizontal, etc. Ritmo, cadência, sonoridade. Nossos sentidos: visão, olfato, paladar, som e tato. Um arco-íris completo de cores. A vasta gama de correspondências sensoriais: quente, frio, morno e gelado. Radiante, enérgico, indiferente, agitado. Calma, irritação, felicidade, tristeza, doçura, aspereza, suavidade e assim por diante.
Um enorme recurso de elementos disponíveis para nos ajudar no processo de compreensão de um trabalho de arte ou dar-lhe algum significado.

Isso é fácil?

Bem, na verdade, como tudo na vida isso também requer alguma prática. E boa vontade. Quanto mais olharmos, mais aprendemos. Quanto mais nos expormos ao contato direto com todo tipo de arte, mais nos acostumamos com sua linguagem. Quanto mais fizermos combinações/relações entre todos esses elementos, mais significado descobriremos. Quanto mais exercitamos essas múltiplas possibilidades de associações entre esses elementos, mais questões surgirão. Através de nossa sensibilidade e criatividade a obra de arte estará se revelando - talvez em todas as suas camadas e significados e poderemos adicionar nosso próprio significado à obra de arte.
Outro fator importante nesse processo é naturalmente, todo o nosso ser e a maneira como vemos o mundo. Isso inclui também o lugar de onde viemos. A cultura a que pertencemos, nossa família e ambiente social que vivemos. Todos esses aspectos afetam quem somos. Eles são uma influência massiva em como vemos, sentimos e somos afetados pelo mundo. O tipo de coisas que gostamos e não gostamos. Portanto, nossos conceitos, ideias e sentimentos sobre uma obra de arte são permeados por todas essas influências.
Posto isto, então temos que nos envolver em um mergulho mais profundo para dentro de nos mesmos. Procurando por pistas nas quais podemos nos relacionar com o objeto de arte. Mas isso só é possível se quisermos fazer essa viagem. Se estivermos dispostos a estabelecer uma conversa, um diálogo sincero com o objeto de arte - e com nós mesmos. Dar o nosso tempo para que esse processo possa acontecer. Num ambiente interno de relaxamento e prazer. Contemplando os aspectos mais criativos e lúdicos do nosso ser.
Seja uma pintura, um desenho, uma performance musical ou uma dança. A próxima chance de você tiver a oportunidade de apreciar arte, basta fazer o exercício. Pergunte a si mesmo e deixe a(s) resposta(s) surgir.
 

Que tipo de perguntas você deve fazer? Bem, os tipos relacionados a você e ao objeto de arte, é claro. 
Como eu me conecto com essa arte na minha frente? 
Em qual ponto pode haver uma conexão entre eu e isso que esta acontecendo diante dos meus olhos? 
Quais meus sentimentos sobre isso? 
Eu me sinto confortável ou desconfortável diante deste objeto de arte? 
Por que estou me sentindo assim? 
Com o que eu poderia relacionar esse sentimento? 
Etc, etc...

As perguntas evocam as questões acima citadas (nossos próprios recursos internos inatos, etc) e nossa própria experiência sensorial de tempo/espaço, que servem de pano de fundo para os questionamentos que a mente produz. 
A intuição - que nada mais ‘e do que nossos aprendizados coletados e arquivados numa espécie de ‘nuvem’ -  também entra nesse processo, contribuindo grandemente para o resultado desse ‘brainstorm’. Desse entendimento do significado da arte em apreciação.
Quando realmente nos conectamos com a obra de arte, o artista, o espectador e a arte se tornaram apenas uma coisa.











Janette Winterson nos diz que: "a arte - toda a arte - é uma habilidade adquirida.
 

"Se eu puder ser persuadido a fazer o experimento novamente (e de novo e de novo), algo muito diferente pode ocorrer depois do primeiro choque de descobrir que não sei como olhar para o objeto de arte, quanto mais como gostar deles."

     […]

"A arte tem um olhar profundo e difícil. Para muitos, esse olhar é muito insistente. Melhor fingir que a arte é burra, ou pelo menos não tem nada a dizer que faça sentido para nós. Se a arte, toda a arte, está preocupada com a verdade, então uma sociedade em negação não encontrará muito uso para ela. Evitamos encontros dolorosos com a arte banalizando-a ou familiarizando-a."













Friday 1 March 2019

FERNANDO PESSOA






Há metafísica bastante em não pensar em nada.
Alberto Caeiro



Há metafísica bastante em não pensar em nada.
O que penso eu do Mundo?
Sei lá o que penso do Mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
Que ideia tenho eu das coisas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).


O mistério das coisas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o Sol
E a pensar muitas coisas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o Sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do Sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do Sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.


Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?


«Constituição íntima das coisas»...
«Sentido íntimo do Universo»...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em coisas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.


Pensar no sentido íntimo das coisas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.
O único sentido íntimo das coisas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.


Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!
(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as coisas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.


E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.